O HOMEM QUE DORME
CAPÍTULO I
O HOMEM QUE DORME Cachorros têm pressa de evoluir, gatos sabem esperar. Eu tinha acabado de me mudar para a cidade daquelas aves raras e de rapina, a Inhuma. A cidade vem no plural, Inhumas. Adoro casal de pássaros no céu voando. E como todo navegante; que chega numa cidade como turista ou para ficar, ficamos sempre à deriva procurando por amigos, querendo muito os encontrar. Não foi diferente comigo e creio que com meu amigo tão grande também. Meu amigo Gigante. Ele morava onde ninguém mais queria morar, ele morava em qualquer lugar, mas tinha seus hábitos meio bárbaros, e assim tinha seus lugares preferidos, sempre estava neles no mesmo horário, para o mesmo ritual diário, mesma labuta. Nunca tive medo de gente sob o céu, nem dentro das cavernas, nunca tive medo de gente, porque gente a gente lida com o olhar de raios laser, chamado compleição, chamado compaixão. Mas não se enganem, não somos melhores, por melhor situação que seja, por qualquer ótica suja, somos apenas diferentes para sermos singulares. Então eu no começo observava aquela montanha de gente, o Gigante deitado no canteiro entre os asfaltos, da Av. Bernardo Sayão, tal qual, Órion visto e confundido pela Deusa Ártemis, para tamanha aflição e flechada do olhar. Todo ser precisa comer. Não era diferente com o Gigante que parecia comer bastante. Mas não comia, quando se passa pela fome, o organismo guarda em gordura a caloria a ser necessitada. Ele tinha amigos que sempre providenciavam o básico, e eu, como vocês verão, passarei a ser responsável também pela sobrevivência do Homem tão Grande, cujas grades invisíveis só os mais sensíveis poderiam quebrar. Ele não era de violência, também não gostava de urrar, suas palavras eram muito poucas, quase que só monossílabos, repetindo sempre palavras das perguntas a ele feitas. Não tinha medo de me olhar nos olhos, olhos faiscantes que sempre me diziam mais do que as poucas palavras. Ele sempre estava dormindo na calçada quando a noite chegava. Então ele se abrigava como podia na regalia de estar protegido por um telhado puxado para quase até a rua, em Inhumas as calçadas são estreitas. Protegido também pelo seu cobertor que ele também chamava de cama, e por quem mais o ama. Sua matilha. Seus cães, muitos cães, machos e fêmeas que com ele dividia a vida, a sina e os tratos, muitas vezes maus tratos. E ele por mais que a vida fosse dura, não era raro desmanchava em sorrisos com o salame do pão, com a Coca-Cola geladinha, e assim a vida parecia melhorar. Depois que nossa amizade florescia, eu perguntava para ele, às vezes querendo provocar... A reflexão deve ser sempre provocada, do contrário não é reflexão, mas quem tem o direito e a varinha de condão? Temos que às vezes correr pois a consciência de humanidade que traz a fé na vida pode ser perdida. - Bacuri, você vai dar salame pros seus cachorros? - Vô não. E assim eu tentava lhe convencer que eles também mereciam e estavam com fome. A maior parte das vezes eu conseguia, que ele desses pedaços de pão. Não faz mal. Ou a gente ama. Ou a gente julga. A maior parte do tempo eu amo. E quando decido por julgar sempre erro por não ser imparcial. Só Deus é Imparcial. E nós devemos rezar para nossos inimigos. Para que eles tropecem na própria ignorância e caiam na real. Eu e meu cabeleireiro, o Seu Moacir, do Salão Pires, nos preocupávamos com ele. Pois basta um mosquito da Dengue para matar um homem de quase dois metros de altura. Basta um resfriado que, evolui para gripe, e uma gripe que evolui para uma pneumonia e pronto, fim de existência, “pá de cal enterra todos na vala comum de um discurso liberal”. Realmente a morte quando mata a tudo nivela... quem come cereal na tigela, ou quem come pão com salame encostado nos tijolos do mundo. O que me chamava atenção no Gigante é que ele era quase mudo, e mesmo como uma força descomunal, mostrava-se doce aos que não se escandalizavam com suas vestes sujas, rasgadas e intactas na dignidade da qual tinham a honra de representar... um ser humano. Que é mais que roupa... é mais que higiene... é uma pessoa. Que cada vez mais me parecia precisar de cuidados especiais. E sempre que me lembrava dessa cena, não conseguia mais ficar numa boa, pois meu amigo aos poucos parecia estar sumindo.
Leonardo Daniel
Enviado por Leonardo Daniel em 24/11/2020
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